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Livros - 0124L
APRESENTAÇÃO
Escrevo este prefácio como um inbetweener uma vez que a dicotomia insider ou outsider não é adequada, tendo em consideração como me situo em relação ao projeto e à equipe de pesquisa que deu origem ao presente livro. Posso ser considerado como um insider porque sou um membro da equipe; membro da Rede Latino-Americana e Africana de Pesquisadores em Privatização da Educação (Relaappe); e publico em conjunto com a investigadora principal do projeto. No entanto, também posso ser visto como um outsider porque o foco da minha pesquisa são as políticas educacionais globais e o continente africano, uma geografia diferente.
Quando pensamos na educação, devemos ter em consideração que ela pode ser considera um bem público (RIZVI, 2016) e um direito humano (MCCOWAN, 2013) fundamental para minimizar as desigualdades. No entanto, não podemos esquecer que há também a perspetiva que a educação é um investimento e uma estratégia para combater a pobreza. Esta última tendência tornou-se mais evidente desde que a teoria do capital humano foi formulada nos anos 1960 (KLEES, 2012). A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial (BM) têm desempenhado nas últimas décadas papéis-chave na difusão da noção que a educação é crucial para o desempenho económico. Como consequência, organizações com diferentes tipologias e mandatos envolveram-se no setor da educação e formação levando a que organizações bilaterais e multilaterais, e até mesmo organizações não-governamentais, escolham a educação como área prioritária contribuindo para a construção de uma arquitetura global de educação (TARABINI, 2010).
No século XXI, a maioria dos países também vem enfrentado grandes pressões para reformar os seus sistemas educacionais. Neste processo, verificamos um aumento da coordenação transnacional e o aparecimento de novos atores, principalmente não-estatais, que incluem atores privados transnacionais, organizações de investigação e empresários, que promovem as políticas educacionais que consideram adequadas (VERGER et al., 2018). Uma outra tendên- cia, particularmente no Sul Global, é a importância das parcerias multi-stakeholder (por exemplo, Parceria Global para a Educação) que estão a desencadear grandes mudanças na política e no financiamento da educação. Estas parcerias multi-stakeholder incluem governos do Norte Global, que são considerados os doadores, e países do Sul Global, que são considerados os beneficiários da ajuda ao desenvolvimento, juntamente com agências multilaterais, organi- zações da sociedade civil, fundações privadas e empresas privadas, atuando todos como parceiros. A nível internacional, o financiamento com as características da Parceria Global para a Educação afeta significativamente as relações internacionais, uma vez que promove uma forma de governação que não é centrada no Estado. Consequentemente, estas parcerias multi-stakeholder aumentam a autoridade dos atores privados como decisores políticos, uma vez que o sector privado não é simplesmente um participante, mas um parceiro (MENASHY, 2019).
Neste esforço está onipresente a lógica de medição das aprendizagens e o discurso da crise de aprendizagem, que emergiu dos objetivos de desenvolvimento pós a agenda de Educação para Todos. Desta forma, esta lógica reduz a educação à escolarização e ao desempenho dos estudantes em testes padronizados em disciplinas como a matemática e a língua de instrução e outras disciplinas que são sujeitas a exames. Esta cultura de medição promove um ensino para os testes e a padronização da educação, envolvendo tipicamente o fornecimento de apostilas, de aulas padronizadas e a existência de um currículo prescrito a nível nacional. Esta obsessão pela medição conduz também ao enfoque que as decisões são baseadas em evidências científicas e à valorização de boas práticas. No entanto, as evidências científicas têm por base frequente a seleção de pesquisas e estudos que confirmam as opções dos decisores políticos em matéria de política educacional. Esta estratégia legitima também as ações de diferentes organizações, em particular grupos de reflexão (think tanks) e centros de pesquisa, e despolitiza as posições dos decisores políticos uma vez que colocam a responsabilidade das suas decisões em atores externos, aparentemente neutros. A este respeito, o nosso trabalho, entre outros, em torno do Instituto Ayrton Senna e da Parceria Global para a Educação é ilustrativo dessa tendência (SILVA; ADRIÃO, 2021; SILVA; OLIVEIRA, 2021a, 2021b)
Como este livro nos mostra, no Brasil, os atores não-estatais, em particular os filantrocapitalistas estão envolvidos nas mudanças introduzidas na educação pública, usando como modus operandi a filantropia de risco. Isto significa que os investimentos devem conduzir a resultados positivos, visíveis e mensuráveis que possam ser apresentados aos investidores. Este esforço de mostrar resultados limita os objetivos e o foco das intervenções e podem comprometer a educação como um bem público e um direito humano. Portanto, a abordagem que os autores do presente livro seguem e o enquadramento que desenvolveram (SILVA; ADRIÃO, 2021) são inovadores e muito bem-vindos. O esforço da equipe de autores deste livro para mapear e analisar os diferentes atores não-estatais envolvidos na educação no Brasil é maciço e uma contribuição-chave para compreender este fenómeno no segundo maior país em termos populacionais das Américas.
O livro também mostra que no Brasil os atores não-estatais dão prioridade à educação pública, em parceria com os diferentes estados e municípios, desenvolvendo centenas de programas e iniciativas. Este é um fenómeno particularmente interessante de ser observado, uma vez que estes programas podem ser considerados “parcerias público-privadas”. No entanto, neste caso, os fornecedores privados não são empresas privadas, mas fundações ou grupos de reflexão (think tanks) financiados pelos lucros e pelos investimentos filantrópicos de risco dos acionistas de empresas privadas.
O presente livro afigura-se como um instrumento com um duplo propósito, por um lado permite a pesquisadores uma reflexão aturada sobre o fenômeno em estudo, por outro permite àqueles de nós que lutam pela educação como um bem público e um direito humano imaginar alternativas e fazê-las avançar.
Viana do Castelo, 22 de dezembro de 2022.Rui da Silva.
(Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto)
SUMÁRIO
Prefácio (por Rui da Silva), 9Apresentação(por Theresa Adrião), 15
Programas privados em redes públicas estaduais no Brasil: consequências da privatização para o direito humano à educação, 25
Sabrina Moehlecke, Raquel Borghi, Maria Lucia Ceccon e Adriana Dragone Silveira
Incidência dos institutos Ayrton Senna, Natura e Unibanco na educação brasileira:privatização e filantrocapitalismo, 77
Theresa Adrião e Antonio Lisboa Leitão de Souza
Condições da oferta educative nas escolas com os programas Educação Integral, Jovemde Futuroe Acelera Brasil:I mplicações para o direito humano à educação,105
Cassia Domiciano, Danilo Kanno e Santiago Castigio e Monteiro<
Avaliação educacional nos programas Acelera Brasil, Jovem de Futuro e Ensino Médio Integral e a garantia do direito humano à educação,157
RegianeHelena Bertagna, Andréia Ferreira da Silva, Elisangela Maria Pereira e Úrsula Adelaide de Lélis
Relações de trabalho e privatização no Brasil, 237
Selma Venco, Maria Vieira Silva, Cintia Brazorotto e Flávio Sousa