Livros - 0220L


PREFÁCIO

Num contexto marcado pelo acirramento das disputas em torno dos destinos da educação brasileira, em que se confrontam, de um lado, uma agenda que prioriza o direito à educação e a garantia do aprendizado a todos e, de outro, uma agenda de restrição de recursos e, consequentemente, de direitos e o acirramento de uma retórica de ódio e interdição do outro, materializado em propostas como o escola sem partido, o corte de verbas para a educação, a ciência e a tecnologia, há a necessidade de se aperfeiçoar a reflexão sobre a situação da educação no país de modo a que nossa luta seja a mais consciente, racional e efetiva possível.

O lançamento do livro Políticas e Gestão da Educação Brasileira em cenário alagoano, organizado por Javan Sami Araújo dos Santos e Salatiel Braga Trajano Junior, diretores da ANPAE Alagoas, é alvissareiro. Só a partir de cuidadosos estudos sobre cada uma de nossas unidades federadas, incluindo os estados e os municípios, em suas mais variadas facetas, teremos condições de compor um quadro geral da situação nacional, em toda a sua diversidade e contradições. Tal síntese é tarefa coletiva que começa com o estudo minucioso de cada realidade regional e/ou local.

Particularmente importante é o estudo da gestão escolar. Por duas razões, pelo menos. A primeira, porque a gestão escolar é componente importante do sucesso escolar e das transformações pelas quais a educação deve, necessariamente, passar para garantir-se o direito a todos e em todos os níveis. A segunda, porque tal área de conhecimento tem recebido pouca atenção nos últimos anos no rol de temáticas privilegiadas pela pesquisa em educação. Dessa forma, investigar os processos em curso no estado de Alagoas, seus limites, seus avanços e os desafios que permanecem, tanto do ponto de vista político/administrativo quanto  um apropriado balanço teórico  dos aportes específicos do estado para a reflexão nacional/geral são empreitadas dignas de nota e que podem permitir um aperfeiçoamento de nossa compreensão sobre os processos em curso.

Bastaria isso para justificar a importância da presente publicação. Entretanto, ela integra esforço geral da ANPAE de estimular a pesquisa e a reflexão sobre a política e a administração da educação como um de seus propósitos norteadores. Assim sendo, sinto-me muito feliz pelo convite dos organizadores para apresentar a presente obra. Para situá-la em nosso contexto, vale uma pequena digressão sobre os avanços conquistados nos últimos anos e desafios que permanecem no horizonte.

Se, nas últimas décadas, observamos substantiva alteração no fluxo escolar, particularmente no Ensino Fundamental, com sua virtual universalização (de 1990 para cá, ultrapassamos os 97% de matrícula líquida, as taxas de conclusão passaram de 22% para mais de 80%, em praticamente todas as unidades da federação), novos desafios se apresentaram para a garantia do direito à educação.

De um lado, as tarefas inconclusas da oferta educacional se evidenciaram. Em primeiro lugar, da educação infantil, notadamente da creche, onde atendemos apenas a 35% da população de 0 a 3 anos, com presença significativa da iniciativa privada. Ou seja, o atendimento público é pequeno. De outro, no ensino superior, onde ainda que tenhamos assistido a uma vigorosa expansão, tanto no ensino presencial quanto no ensino à distância, passando de 1,6 milhões de estudantes de ensino superior em 1990 para mais de 8 milhões em 2019, mantemos mais de 70% da matrícula em instituições privadas, principalmente em instituições de baixa qualidade, e ainda temos parcelas grandes da coorte etária dos 18 aos 24 anos sem acesso ao ensino superior. Atendemos menos até que nossos vizinhos latino americanos, mais pobres do que nós, com sistemas universitários de menor qualidade que o nosso. Assim sendo, expandir com qualidade o ensino superior permanece como importante tarefa para nossa política educacional.

De outro, a incorporação ao Ensino Fundamental regular, de parcelas da população historicamente alijadas do direito à educação, quer seja por falta de escolas, quer seja pela exclusão precoce do sistema escolar, principalmente devido às múltiplas reprovações, fez com que se evidenciasse a incapacidade de garantir o aprendizado dessas parcelas da população historicamente alijadas do sucesso na escola. Superar tal situação representa o maior desafio de nosso sistema educacional exaustivamente evidenciado pelas provas nacionais e internacionais. Nosso nível de aprendizado é inferior ao da maioria dos países da OCDE, como atestado pelo PISA, resultado também indicado pelas provas nacionais e mesmo estaduais e municipais em alguns locais. Entretanto, assim como a distribuição de termômetros não é remédio para a febre, constatarmos que nossa escola, mesmo aquela a que têm acesso as camadas economicamente mais afluentes, tem resultados piores do que até as camadas populares de países desenvolvidos não é suficiente para encontrarmos as respostas de como alterar esse histórico atraso educacional. É necessário ir além disso.

De imediato, constatamos que nossa expansão educacional se deu subfinanciada, desde os anos 30 e particularmente dos anos 60. Estudos mostram que nossos padrões de financiamento são inferiores ao necessário para garantirmos condições mínimas de funcionamento de nossas escolas. Não tem sido pequena nossa luta para que a educação brasileira tenha um financiamento capaz de garantir o direito à educação de todos em todos os níveis. Desde nossa batalha pela reintrodução da vinculação constitucional de recursos para a educação, consubstanciada na Emenda João Calmon, em 1983, na luta pela sua ampliação na Constituinte de 1987-1988, na busca de uma regulamentação que garantisse a manutenção e desenvolvimento do ensino, na LDB, até a luta pela perspectiva de gasto do equivalente a 10% do PIB em educação, como finalmente conseguimos inscrever no Plano Nacional de Educação, de 2014. Entretanto, essa disposição legal não está sendo cumprida e é pouco provável que venha a sê-lo nos anos restantes de vigência do PNE, até 2024. De todo modo, os defensores da escola pública não desistimos. Transformamos lutas específicas e/ou localizadas em oportunidades de ampliar o gasto público com educação, de redistribuir o Fundo Público em benefício da maioria da população. Assim o fizemos nas jornadas que permitiram a institucionalização e regulamentação de um piso nacional de salário para o magistério, que compreendeu até mesmo dura e demorada batalha judicial que perdura até hoje em escaramuças Brasil afora, contra todo e qualquer administrador que quer burlar o dispositivo que garante um mínimo de remuneração para o magistério, pedra de toque de qualquer política educacional que busque garantir qualidade de ensino para todos. Também nos empenhamos, desde a instituição do primeiro modelo de política de Fundos Contábeis, o Fundef em 1996 a ampliar o mecanismo de financiamento via subvinculações com a dupla finalidade de garantir um mínimo de gasto por aluno em cada rede de ensino, assim como reduzir as assimetrias nacionais e regionais. Para tal, é fundamental a complementação da União aos Fundos estaduais com menos recursos. Nesse sentido, a perspectiva de aumentarmos, no atual momento de debate sobre a constitucionalização do Fundeb, de 10 para 23% a complementação da União ao Fundeb (este texto é escrito no momento anterior ao debate do relatório da PEC 26/2020 no Senado) representa passo importante. Ainda que tenhamos de conviver com problemas, tais como a perspectiva de dirigir parcela da complementação associada a resultados, que pode ter efeito de acirrar desigualdades, indo, portanto, em sentido contrário ao que se espera das políticas de fundos contábeis, o balanço que se pode fazer desse processo é positivo, pois representa o acréscimo de novos recursos para o financiamento da educação. Nesse sentido, o aspecto mais significativo é a “trava” que estabelece que apenas 30% dos recursos da complementação da União ao Fundeb pode vir de recursos de MDE (além de proibir a utilização de recursos do salário educação para tal). Isso significa que 70% dos recursos da complementação da União devem vir de fora dos recursos de MDE. É dinheiro a mais para a educação de uma maneira geral. É uma vitória. Pequena ante nossas necessidades, mas uma vitória.

Entretanto, e é importante não nos esquecermos disso, os desafios avolumam-se. A melhoria da qualidade de ensino permanece como tarefa não cumprida, tanto do ponto de vista da pesquisa quanto da política educacional. Aqui temos concentrado o melhor de nossos esforços e o tema tem ocupado o centro do debate educacional no país nos últimos anos. Certamente, a gestão ocupa um aspecto importante na melhoria dos resultados e, permito-me detalhar dois aspectos.

De um lado, o papel fundamental que joga a legitimidade da gestão educacional na consecução de bons resultados. Esse aspecto tem sido descurado na grande maioria das redes de ensino no Brasil. Viceja entre nós uma visão autoritária de gestão educacional que crê na possibilidade de reformas efetivas sem a construção da necessária legitimação que só processos democráticos podem conferir. É por isso que um dos pilares da atuação da Anpae no que diz respeito à gestão, tem sido a defesa da gestão democrática, tanto da unidade escola quanto dos sistemas de ensino. Só a participação de todos na construção das alternativas a serem implantadas garante que estas de fato o sejam. Assim, entendemos que processos democráticos são um fim em si, uma vez que fazem parte de um projeto de educação emancipadora. Menos percebido é que só a gestão democrática confere a legitimidade que se necessita para atingir a eficiência nos sistemas de ensino. Essa perspectiva é oposta à visão burocrática e tecnocrática que concebe a possibilidade da reforma educacional urdida em gabinetes fechados sem ampla discussão e participação de todos. Nós as rechaçamos, não só por serem autoritárias, mas também por serem ineficientes. Há ampla literatura que chama a atenção para a capacidade que a escola, e em sentido mais amplo, os sistemas escolares têm de resistir à mudança. Só para lembrar um aporte teórico importante, lembremos Licínio Lima, da Universidade do Minho, e o conceito de “infidelidade normativa”. A escola se organiza fazendo crer que cumpre as normas com as quais não concorda para se manter imutável. É essa a origem do fracasso das reformas autoritárias, cuja matriz empresarial é apenas a faceta mais nova de um histórico desastre educacional. Não se transforma a escola sem a participação ampla da comunidade escolar. Menos ainda contra ela.

O segundo aspecto que queria destacar é que apenas quando colocarmos no centro de nossas preocupações aquelas populações historicamente excluídas da escola, aqueles que no passado não tinham o direito a ter escola, porque não havia escola para todos, aqueles que eram excluídos da escola pelas múltiplas reprovações, e que ainda o são por essa forma, posto que nossos índices de reprovação, apesar de terem diminuído em relação ao que tínhamos quatro ou cinco décadas atrás, ainda permanecem em níveis elevados, são os que hoje são excluídos do aprendizado, o que está amplamente denunciado pelas inúmeras avaliações externas a que são submetidos nossos alunos. Os mais pobres, os negros e os meninos são os que têm os piores resultados na educação básica. Mudou a forma de exclusão, mas os excluídos são historicamente os mesmos.

Assim, além de nos preocuparmos com o desafio de obter melhores resultados, temos de nos preocupar em diminuir a desigualdade nos resultados. De nada adianta melhorarmos as médias das notas no país, numa rede ou até mesmo em uma escola se a distância entre os que aprendem mais e os que aprendem menos aumenta. Só quando as médias melhorarem e ao mesmo tempo a desigualdade diminuir estaremos nos aproximando da garantia do direito à educação para todos. Caso não atentemos para isso, estaremos apenas dando razão aos reprodutivistas que vaticinavam que o destino da escola é chancelar pelo mérito acadêmico a desigualdade social.

Exatamente por não nos conformarmos com isso é que continuamos lutando por uma escola que garanta o direito à aprendizagem para todos. E, nessa perspectiva, temos de ir adiante do que já sabemos. Já sabemos que as condições de desigualdade social, de classe, raça/cor e gênero com que os estudantes chegam à escola se transmutam nos resultados escolares. Insurgir-se contra isso significa nos colocarmos o desafio de fazer com que a escola não reproduza a desigualdade de origem, mas que reduza o efeito de tais desigualdades nos resultados de modo a que nossa escola pública seja, de fato, o que Anísio Teixeira, cujos 120 anos de nascimento comemoramos em 2020, a máquina que constrói as democracias. É essa reflexão inadiável que encontramos em cada página do livro que aqui apresentamos.

Com eles a Anpae, por meio da editora ANPAE propicia ao público leitor essa contribuição de seus associados de Alagoas.

Campinas, 24 de agosto de 2020.

 

Romualdo Portela

 


SUMÁRIO

Prefácio
Romualdo Portela

Apresentação
Javan Sami Araújo dos Santos
Salatiel Braga Trajano Júnior

Capítulo 1. Participação na gestão educacional em Alagoas:
necessidades formativas para a atuação de conselheiros municipais de
educação

Javan Sami Araújo dos Santos

Capítulo 2. Complexidade da gestão das escolas públicas estaduais de Alagoas: um estudo de caso
Salatiel Braga Trajano Júnior
Javan Sami Araújo dos Santos
Jorge Eduardo de Oliveira

Capítulo 3. O Programa Escola 10 e os desafios da gestão da educação em Alagoas
Cristina Maria Bezerra de Oliveira
Maria das Graças Correia Gomes
Wellyngton Chaves Monteiro da Silva

Capítulo 4. Elementos da governança da educação pública da rede municipal de Maceió: a parceria Semed/PNUD e o Programa Viva Escola
Georgia Sobreira dos Santos Cêa
Elainy Paula Viturino Braz
Sandra Regina da Paz

Capítulo 5. A contrarreforma do Ensino Médio no estado de Alagoas: análise do discurso oficial
Geisa Carla Gonçalves Ferreira
Geisa Ferreira dos Santos
Samuel Barbosa Silva

Capítulo 6. Um estudo de caso sobre a avaliação do ensino e aprendizagem nos cursos de Direito em Maceió
Lana Lisiêr de Lima Palmeira
Carla Priscilla Barbosa Santos Cordeiro

Capítulo 7. Um olhar para além da gestão da educação jurídica em Alagoas: quais as reais condicionantes das suas políticas expansionistas?
Lana Lisiêr de Lima Palmeira
Carla Priscilla Cordeiro

Capítulo 8. A gestão democrática do ensino público municipal de Rio Largo/AL: as atribuições do gestor escolar
Alex Vieira da Silva
Eva Pauliana da Silva Gomes
Givanildo da Silva

Capítulo 9. Um olhar sobre a “nova” reforma do ensino médio: o modelo piloto adotado na rede pública estadual de Alagoas
Simone da Costa Silva
Elione Maria Nogueira Diógenes

Capítulo 10. A política afirmativa na Medicina: uma questão em aberto na formação médica em Alagoas
Jusciney Carvalho Santana

Capítulo 11. A política de educação infantil em Alagoas: contrapontos da legitimação de um direito
Idnelma Lima da Rocha
Edna Cristina do Prado

Capítulo 12. Política pública de alfabetização: influências governamentais no desenvolvimento do pacto nacional pela alfabetização na idade certa
Maria Jeane Bomfim Ramos
Maria Betânia Gomes da Silva Brito

Capítulo 13. Aulas virtuais: a educação pública em Alagoas em tempos de pandemia COVID-19.
Abrãao Felipe Oliveira
Jéssica Carneiro do Nascimento
Vanessa Sátiro dos Santos

Capítulo 14. Plano Municipal de Educação no planejamento educacional local: a participação da sociedade
Luciene Amaral da Silva
Inalda Maria dos Santos
Edna Cristina do Prado
Isabela Macena dos Santos Marques

Capítulo 15. Educação e desigualdade social: apontamentos e desafios para a escola pública
Maria José Santos da Silva

Capítulo 16. Leitura imanente: superação do analfabetismo funcional pela autogestão da formação de si
Ciro Bezerra
Rafael M. de Moura
Fernanda Ferreira Cardoso
Mayris da Paz Lima

Autores e Currículos